27 de março de 2009

Um ar de sranan surinamês no Brasil

Ich hob die Mule mit de Relhe ins Potrer getockt, além do enunciador, entende só quem fala simultaneamente alemão e português brasileiro sulista – muitos qualificativos para um só ouvinte!

É a fala de grande parte do colono imigrante alemão no sul brasileiro e significa: toquei a mula no potreiro. Potreiro, por sua vez, é sinônimo sulista de piquete.

A estrutura da frase é perfeitamente alemã. Um alemão perceberá que alguém está lhe falando em sua língua, mas nada entenderá. De outro lado, o brasileiro menos ainda entenderá, apesar de seu interlocutor usar suas próprias palavras. Os três substantivos da frase e parte do verbo composto são palavras portuguesas ligeiramente adaptadas à gramática alemã.

É uma língua sem escrita. Não é exatamente uma pequena Babel. É antes a sonhada, porém malograda solução democrática que Babel insinua: falemos uma única língua, que nos entenderemos! Só que quem entre os babilônios seguiu esta lógica tão lógica apartou-se dos demais e ficou em condições iguais aos demais.

Este idioma alemão brasileiro consagrou-se recentemente como mais uma língua autônoma de nosso universo. Mas a escolarização é seu coveiro.

24 de março de 2009

Gramestilo

Por duas razões quero insistir na questão. Primeiramente, nós tradutores, literários e de prosa, constantemente temos que desmantelar e destroçar torneios paragráficos para reconstruí-los na forma natural de outro idioma. De preferência, esquecendo por completo a estrutura original, que nos vicia o resultado. Para tanto, nem de longe basta dar conta de palavras e sinônimos. Requer-se torneio e estrutura. A segunda razão é que toda hora minhas fontes não literárias me demandam a reconstrução. Muitas vezes, este processo de reordenamento me custa mais tempo do que a procura de algum sinônimo estrangeiro. Vejamos 2 exemplos típicos da prática, ou seja, da realidade:

a) ... eu estava escultando uma linda musica que mesmo sem agente ter mantido contado eu já escolhe essa linda musica para nos a letra é muito forte ela é assim: direpente quando menos se espera, (...) mas você vai se acustuma no final. deixe acontecer e você vai ver vale apena tenta.

b) ... Assim, considerando-se que como boa parte dos conteúdos trabalhados pela disciplina de história possibilitam uma grande aplicação prática, seria válida a contribuição através do desenvolvimento do presente estudo tendo como objetivo principal a apresentação de metodologias de trabalho utilizando-se saídas de campo como técnica de construção do conhecimento.

O primeiro exemplo é impactante, carece de gramática básica, o que é raro nesta dimensão. Mas não custa a nós tradutores consertar tudo sem grande perda de tempo. Já o pequeno segundo exemplo, academicista, me causa um atraso de talvez 15 minutos em função de seu estilo. Particularmente seus gerúndios nos transformam em arqueólogos à procura das origens e referências desses gerúndios.

Perdi o norte? Não. Soube de fonte fiável que há até escritor que não sabe escrever. Essa afirmação implica que o cara tem sucesso, senão não seria “escritor”. É, portanto, o revisor editorial que faz desse escritor um escritor. Difícil de digerir essa verdade, seguro. Mas em nada muda não acreditar. Para abrandar: deve ser coisa exclusivamente de escritor moderno.

Pois bem. Aonde eu queria chegar? A On writing well, de William Zinsser. Li outros livros do gênero, em alemão e português. Mas o português é o pior, é detalhista, técnico. O inglês é o melhor. Parte da lógica, do bom senso. É o que me dá pé: simplesmente pense no que está escrevendo. Seja simples, extinga chavões. Use palavras curtas em lugar de longas. Seja preciso. Corte. Ao cortar, se torna preciso. Ao cortar, recorre à gramática para encontrar soluções melhores, mais elegantes. Ao cortar, aguça seu sentido pelo bom estilo. É só. É a questão. E se quiser se aperfeiçoar nessa técnica, comece a mergulhar em detalhes gramaticais e de estilística. Não obstante, é gramestilo: pouca gramática, e muito estilo.

Onde estão as letrinhas mais lindas?

Estava com outra carta na manga para esta sexta quando me encanto pela palavrinha-chave das letrinhas, que novamente me cai na vista como possível tema anotado. Encanto e decisão acontecem no mesmo instante. Um pouco de intuição faz bem à redação!

É um tema que sinto como poético, como poesia de amor, bem entendido. É mais emocional, dá mais rédeas.

Bem, basta de prelúdio amoroso. O que me inspirou para o tema é uma coincidência na dupla dicionário e filas nas bilheterias do SESC, concretamente. Aquelas filas de ingressos pré-encomendados e reservados no nome da gente.

Observo ano a ano que os organizadores lá dominam mais ou menos a divisão por dois para o alfabeto de 24 letrinhas, mas não dominam a divisão em partes iguais das filas de seus espectadores. Devem estar separando a-m de n-z. A primeira fila chega a ser 5 vezes maior que a “minha” fila. E isso se repete ano a ano. Acentua-se a desproporção porque deixam até todas as Marias brasileiras na primeira fila.

Outro enfoque: sempre observo nos dicionários brasileiros como aquela divisão tradicional que cai entre as letras m e n acentua artificialmente o desequilíbrio do dicionário. Minha velha enciclopédia alemã divide seus tomos em a-k e l-z para ter 2 volumes iguais.

A relação entre o volume de páginas entre a-m e n-z para dicionários padrão comportam-se assim nas 4 seguintes línguas: Dicionário Etimológico Nova Fronteira: 542:296 páginas (= 1,8); Larousse (francês) 227:133 páginas (= 1,7); Oxford Dictionary and Thesaurus: 987:801 páginas (1.3); Duden (alemão): 369:316 páginas (1.16).

Nesses números está a chave para minha preferência lingüística, a beleza do português brasileiro falado, apreciado também por outras nações.

Quais as letrinhas que provocam esse encanto pessoal e internacional? É a abundância dos as em vatapá e abacate e sua singular nasalização em amante, tamanduá e mamãe; são os bês em beberibe e bebê, tão superiores aos pês de papo e pipa. Os dês de dado e dendê, tão mais carinhosos que os tês de tato e tatu. Não posso cantar o efe, mas compensam o gê e logo mais o jota, as suaves jóias do português, alcançadas apenas pelo francês. O aga é mero ornamento. Abunda o i: Ijuí, Ivoti e Iraí; subversivo, multiplica-se até à custa alheia em pede e mede, atordoando ainda o dê : pedgi i medgi.

O que tem a oferecer a contraparte? Tem, digamos, o o em sua forma aberta ou quando convertido em u: pouco, louco; já o rr, quando carioca (um agá alemão e inglês), é uma jogada genial do português que sequer os franceses acompanham! O vê e o zê merecem menção, mas não são lá grande coisa! Ok., nosso pê merece certo destaque, pois dispensa o duro soprinho do irmão inglês e alemão. Curiosidade à parte: os colonianos encontraram seu jeito, Bonaparte ensinou, e gostam até hoje.

Bem. Como dizia, são coisas de amor e de preferências que não se discutem! Na fila do SESC fico meio sozinho; já nas minhas preferências não: o povo brasileiro nomeia 5 entre 6 de seus filhos com minhas letrinhas amadas!  

Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS.

A difícil equação do “tradutor nativo”

Não serei o único “tradutor nativo” a reparar sua metamorfose de “nativo A” para um eventual “nativo B”, e a fazer suas continhas, suas equações, que são de menos, pois nunca chegam a cem. Para mim, o “A” coincide com alemão, e o “B” com brasileiro.

Para colocar de cara o cerne da coisa: no Brasil, posso me caracterizar como tradutor nativo para alemão. É o que acontece. Poderia eu, entretanto, na Alemanha denominar-me nativo brasileiro? Melhor: a partir de quando eu eventualmente poderia?

Façamos uma continha: os primeiros 13 anos de vida passaram-se no Brasil. Desses, 6 aninhos sem ouvir português, seguidos, porém, de marcantes 7 anos de escolaridade brasileira. Digo marcante porque, no mundo teuto, sinto eternamente as vitais lacunas da escolaridade perdida na Alemanha. As lendas, a geografia, as cantigas infantis e folclóricas, das quais aliás não acho graça (sic!). Neste sentido, a balança imaginária começava a tender para a natividade brasileira. Seguem 23 anos na Alemanha, sem grandes simpatias por ela, o que prejudica sua absorção. E outros 19 anos no Brasil. Anos atentos à língua, anos logo voltados à tradução.

De certa forma, a balança entre A e B passou do ponto de equilíbrio. Claramente pela estatística, mas também aparentemente, pelos indícios. Aritmética já não é. É mesmo sensação e observação. Sinto onde meu vocabulário evolui e onde definha. E esse processo não é linear. Depende do registro e do campo temático, por exemplo. Recentemente, o alemão sofreu reforma ortográfica um bocado impactante. Flagro-me com dúvidas antes inexistentes com relação a verbos compostos e às maiúsculas. Até com relação a preposições. É quando me sai um surdo “opa”, é quando percebo que o tempo correu, que estou a 12 mil km daquela língua, que ela chega pelos meus olhos, e não pelo ouvido. Que me sai pelos dedos e não pela boca. Língua morta, de certa forma. (Já outros conseguem ressuscitar línguas mortas há milhares de anos!)

É uma metamorfose muito interessante, e certamente todo tradutor a experimenta em sua própria particularidade de ser e de ela suceder. Com maior ou menor intensidade. Mais que aritmética, é alquimia. É onde falham gavetas burocráticas ou sindicais. É dirigível [quis usar conduzível, mas vetam-me os dicionários], porém não dominável.

18 de março de 2009

De Chuí a Chuy

é um passo. Fomos desprevenidos, de turismo, e assim chegamos. Depois de 500 km de terra plana, finalmente o extremo sul do Brasil. Queremos adentrar 20 km em terra uruguaia para ver um famoso forte. Cruzar fronteiras é sempre algo fascinante, ainda mais neste Brasil sem fronteiras.

Barra-nos um aduaneiro uruguaio. Quer a carta verde, que teríamos que providenciar no centro de Chuí. Seu colega parece estar em desacordo, mas é subordinado. Mercosul parcial.

Vamos à Barra do Chuí, onde o pessoal, incrédulo da brincadeira do alfandegário, indica-nos uma estrada opcional por sobre a ponte internacional sem qualquer controle. Fazemos nosso passeio, retornamos deslumbrados com a beleza da fortaleza San Miguel e do pampa.

No centro de Chuí, a grande surpresa. De repente nos encontramos em meio a um infinito turbilhão de pessoas em plena e ampla avenida de 4 pistas onde mandam o pedestre e o camelô. Sabe-se lá em que solo estamos. Difícil encontrar um brasileiro. Nas placas comerciais e na propaganda predomina o espanhol, o turista é antes uruguaio que brasileiro. Turista do hemisfério sul aparenta rumar para o norte. E o extremo sul brasileiro é o extremo norte uruguaio.

Meu Passat 78 clama por uma oficina. Em três oficinas atendem-me mecânicos uruguaios. A pizzaria na Barra está em mãos uruguaias, a que talvez se deva sua excelência. No hotel brasileiro, avisos exclusivamente em espanhol. Na praia, turistas uruguaios.

O que eu queria narrar mesmo é dos dois idiomas que ali se confundem. Uruguaios que, entre si, falam mais rápido que seus velhos carros andam. Não há como entender. Conosco falam um portunhol carregado de eternos surdos: preciço viachar amañâ. Cidade repleta de tradutores e intérpretes: cada qual é seu próprio tradutor passivo. Recomendo a beleza desses rincões também aos tradutores ativos!