20 de abril de 2009

O cheiro do livro

Livraria livraria tem seu cheiro todo especial. Tem porque todo livro tem seu cheiro de livro. Livro novo, velho, mofado, plastificado, esquecido, ilustrado. Claro que, quando livraria definha virando papelaria, o pobre resto dos livros fraqueja. E a livraria virtual, então.

Tenho em casa, entre o cheiro de meus livros, dois extremos: um de abrir as narinas até os pulmões, o outro, de guardar a sete chaves na queijeira.

O cheiro do primeiro exala há muitos anos do Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Mais precisamente de sua capa de couro. Triste verdade é que, após 26 anos de convivência, esta capa deu o que teve a dar. O odor está mais virtual que real.

Foi parar em minha estante também o Novo Dicionário Websters, distribuído em cadernos, como cortesia para o assinante de um jornal. Cada verbete procurado é uma ânsia de vômito. Que processo químico terão usado na produção? Teria sido a razão da cortesia da editora?

A bem da verdade – também este nauseoso sucumbe ao tempo. Felizmente.

19 de abril de 2009

Mantenha distância

adverte o caminhoneiro na sua traseira. Pois perante cada tradução deveria constar a mesma placa. Mantenha distância! A distância para o original em sua estrutura lingüística, que invariavelmente quer impregnar e efetivamente impregna nosso labor quando este não for rotina aperfeiçoada.

É o constante “nós dizemos” do Agenor Soares de Moura, com que ‑ pasmem ‑ confronta até os melhores escritores-tradutores brasileiros. Não é mirabolante? Seria desleixo do tradutor? Penso, muito mais, que as ocorrências revelam a genuína gravidade do perigo corrosivo da transformação dos idiomas. Também o tradutor tem uma só cabeça.

Em meio a boa tradução de um edital do British Council deparo-me com um “tem como objetivo encorajar o intercâmbio”, direto do inglês. Nós diríamos “incentivar” ou “fomentar”, também acepções do verbo “to encourage”. Falsa amizade! Mais: “A novidade este ano é o Charles Darwin Award”. Quanta preguiça para quem recebe pagamento por palavra! Deveriam descontar o prêmio de 7 centavos do “award”. E um desconto pelo mau ordenamento da frase. Mal cheira também: “As pesquisas podem ser em qualquer área de Ciências.” Aqui ocorre, no mínimo, pobreza de estilo. Outro desconto. Será que há tradutor que no final do mês não consegue saldar suas dívidas com o patrão após receber, como é uso em certas fazendas no seio do Brasil?

Os parcos exemplos já não se restringem ao âmbito relativamente simplório do vocabulário. Envolvem a estrutura da frase.

Com a experiência, eu mesmo comecei a adotar a técnica de não me deter muito nesses itens na primeira corrida, pois já numa primeira revisão consigo melhor me desprender do idioma “opositor”, o que facilita chegar intuitivamente às soluções não encontradas na febre da batalha original. Na revisão descubro as vírgulas de uma gramática não brasileira; orações e intercalações que soam mal enquanto não deslocadas ao agrado do ouvido.

O fator tempo é o melhor amigo do tradutor para este desembaraço dos idiomas. Separa (distancia) o texto concreto à nossa frente do emergente texto virtual em nosso fundo. Uma terceira e quarta revisão, com intervalos de dias ou semanas, são bálsamo para as inevitáveis infecções de nossas línguas, que nos acarretam dor de ouvido e que depois não queremos engolir. Verdadeiro caso de otorrinolaringologista.

Sinceramente!

Chiclete com banana

Pode haver título melhor para essa música, que prefiro na interpretação de Tânia Maria? Pode haver melhor música para esse título certeiro, samba com suingue, ou jazz com rebolado de samba?

Poesia, é claro, precisa ser certeira, senão não seria poesia. E essas três palavrinhas tão bem fundem a essência das duas culturas (musicais), a essência da música americana com a da brasileira. Colocam duas essências culturais em perfeita harmonia musical e poética. Não será exemplo único, como certamente ocorrerá a este ou aquele leitor calado. Mas é um exemplo perfeito.

Afinal, evitou-se o desgraçado “samba-jazz” ou “jazz-samba”. O grande poeta Gil providenciou sua própria e perfeita tradução. Chiclete, o símbolo maior daqueles que criaram o jazz e adoram comer uma banana exótica. Já a banana é o símbolo dos descamisados, que têm a seu alcance a preciosa banana e, modernamente, o pobre suplemento chewing gum. “Chiclete com banana” é uma "tradução", uma ponte perfeita. Quem masca chiclé é norte-americano. Afinal ninguém sabe que os astecas e os maias mascavam a goma original. Já o americano – que associação lhe suscitará, uma vez que sua banana provém da América Central? Imagina jazz com rumba ou merengue?

Como vemos, a tradução poética é perfeita - para nós brasileiros.

A técnica do papagaio

Quando a situação descontraída em circunstâncias de interpretação me permite, apresento o orador fulano tal, e depois a mim como seu papagaio, que tudo repete, mas à sua maneira.

Essa gracinha é menos gracinha do que parece. O profissional bem-sucedido tem a grande habilidade de interpretar parágrafos inteiros. Eu, por minha vez, nas poucas oportunidades anuais em que interpreto aulas ou palestras, interpreto oração por oração ou frases curtas. Algo entre consecutivo e simultâneo.

Afirmam que é conveniente ser bom orador para bem interpretar. Pois eu não sou bom orador nem mau orador. Simplesmente não sou orador. Não obstante, a minha técnica me permite interpretar determinadas falas. É uma técnica que surpreendente e felizmente compensa minha péssima memória de queijo suíço. Sinto minha forma de tradução como uma técnica que dispensa a memória, e por isso mesmo a figura do papagaio cola bem. A sensação é até mesmo de não estar pensando, de tão automaticamente que ocorre.

Interpretar uma fala clara e bem pensada não é lá complicado. Já falas desconexas, desestruturadas, o “pensar alto” calam o papagaio, que, boquiaberto, levanta as asas em desespero, recobrando seus sentidos apenas quando verdadeiramente interpreta.