16 de agosto de 2009

Tradução litarária



Gentileza de Dieter E. Zimmer
   Dieter E. Zimmer nasce em 24 de novembro de 1934 em Berlin. É escritor (20 livros na temática Psicologia, Biologia, Antropologia, Medicina, Lingüística, Comunicação Social e Biblioteconomia), tradutor (organizador das obras completas de Vladimir Nabokov) e jornalista. Formou-se em Ciências da Literatura e da Linguagem, em Berlin, Genebra e nos EUA. De 1959-1999, foi redator do renomado semanário alemão liberal Die Zeit, periódico iniciado em fevereiro de 1946, com hoje mais de 2,1 milhões de leitores. Zimmer obteve nove prêmios, dentre eles dois prêmios por traduções: o prêmio Helmut-M.-Braem, em 1996; o prêmio Fundação Heinrich-Maria-Ledig-Rowohlt, em 2008.
   Não pude deixar de primeiramente apresentar ao leitor brasileiro este grande jornalista alemão, ademais tradutor e escritor, de quem ando expondo um capítulo, por mim seqüenciado, que referencia especificamente o ofício da tradução. Ao perceber que das poucas linhas citadas jorravam parágrafos e páginas, não tive como não solicitar o consentimento do autor para dar continuidade a suas observações aparentemente intemporais.
    Responde Dieter Zimmer: „Uma vez que, a meu ver, meu livro ‘Redens Arten’ está fora do prelo, voltou a pertencer a mim – assim creio ‑, e portanto posso com todo prazer conceder-lhe a permissão para a publicação do capítulo Concurso dos tradutores em seu blog.”

Agradecemos ao Dr. phil. h.c. (Univ. Técnica de Dresden, 2003) Zimmer pela cortesia. Confira sua página web: http://www.d-e-zimmer.de/




Concurso de tradutores

A provisória indispensabilidade do human translator 

   Inícios de 1965, a Freie Akademie der Künste de Hamburg (Livre Academia das Artes) promoveu um congresso internacional de tradutores e, neste contexto, um concurso de tradutores em cooperação com o semanário Die Zeit. Devia ser traduzida uma prosa impressionista de Graham Green, ainda não disponível em idioma alemão: The Revenge. A participação foi grande: houve 620 remessas, todas anônimas. Como redator de um caderno da “Zeit”, fui parar no júri, decerto por ter tido oportunidade de ter alguma experiência como tradutor literário. Não dispunha de teoria da tradução, nem posteriormente a desenvolveria (na prática da tradução, tão pouco ajuda quanto a termodinâmica no preparo de um grelhado). Traduzira, contudo, autor exigente que passara a vida circulando entre duas línguas – Vladimir Nabokow. “Quando um tradutor começa a traduzir o ‘espírito’ em lugar do mero sentido de um texto, já começa a trair seu autor”, escrevera Nabokov; aliás, mandara simplesmente destruir uma tradução insatisfatória (sueca) de sua “Lolita”. Certamente não pretendera negar que uma obra compreende também algo como um “espírito”; quis apenas acautelar-se contra tradutores que grosseiramente ultrajavam o sentido literal em nome de um “espírito” vago e, certamente, nunca apreensível. Em resumo: certa precisão parecia-me muito desejável; a aspiração da precisão, porém, veio acompanhada da compreensão de que uma tradução pode ser precisa em diversos patamares, e que a precisão num deles pode ser a imprecisão noutro. Pode, por exemplo, tentar imitar a sonoridade do original, sua ressonância, aliteração – desconfigurando e desviando os sentidos das frases. Ou pode reproduzir com grande equivalência as estruturas frásicas, alcançando justamente desta maneira um grau de fluidez ou dificuldade não próprio ao original, tornando-se, assim, imprecisa. A boa tradução, assim me parecia, só pode ser um meio-termo que trate de ao menos diminuir as imprecisões dos diversos patamares. Agrega-se a isso que até palavras sinônimas de dois idiomas não costumam ser total e verdadeiramente equivalentes; e que mesmo as frases mais simples podem geralmente ser traduzidas nas mais diversas formas, bem como as preposições por trás, que ainda no idioma fonte poderiam ter sido expressas de diversas maneiras. Tudo isso havia me convencido de que qualquer tradução pode apenas ser aproximativa, infelizmente – e que seu crítico deve, portanto, dar um (certo) desconto: não pode aquilo que ele mesmo prefere considerar a tradução “correta” sobremodo ser o padrão das coisas.” 
   Essa venialidade já não resistiu depois da leitura de 620 traduções de um mesmo texto. (...) 
   Para um texto como o em questão – prosa moderna de uma cultura familiar, que pretende e deve antes ser lido pela narrativa e não por específicos interesses lingüistas ou outros ‑, para tal texto, afinal o caso mais comum, espero do tradutor que ele reproduza primeiramente o sentido terminológico com a maior precisão possível; e, por segundo, que mantenha o quanto possível (o máximo) daquilo que prefiro denominar de aura de um texto: cadência, ritmo, patamar estilístico, associações despertadas, carga histórica de sua linguagem. Creio ser essa a tarefa.
   A peça impressionista de Graham Green não é lá muito difícil. A desvantagem: a tradutores realmente bons oferecia poucas possibilidades de comprovar suas habilidades. A vantagem: não haver condições extremas senão as do cotidiano tradutório.
   Não obstante, veremos que também “A vingança” teve os seus busílis. Não é nada fácil imitar no alemão o parlando da lacônica dicção greeniana, aparentemente leve, relaxada, porém nuançada; a caminho de nosso idioma, tudo isso prontamente adquire o peso de uma esponja encharcada. Ademais, havia armadilhas. Aquela em que a maioria caiu consistiu em seis palavrinhas, um diálogo: He went into Cables and died. Cables, em maiúscula: não consta em dicionários. Significava: Ele foi à Cable & Wireless (hoje companhia para o trânsito internacional de telefonia e telégrafos do correio britânico), e morreu.
   Admitido, (;) ninguém precisa saber isso. Só que faz parte do serviço comum do tradutor, resolver questões que na verdade não se sabe nem se pode saber. Ou a gente sabe suprir a lacuna no conhecimento; ou a gente encontra um jeito elegante de se sair dessa. Quem, portanto, traduz: Ele foi à loja de cabos e faleceu, não está de todo certo, mas ao menos percebeu que Cables deve ser alguma firma, de modo que sua solução se enquadra sem percalços no contexto.  
   Agora, as contorções de quem não sabe encontrar saída: foi parar entre cordames; foi parar numa confusão de cordames, e neles morreu; chegou aos cordeiros; foi a Cables (lugar a ser ainda fundado, noutros casos simplesmente chamado C., por má consciência); tombou na invasão de Cables. Outros lhe atribuem uma convulsão tropical ou o mandam para um campo minado. Enigmático soa: Foi para o Cables (cinema ou zona?) E assim vai indo, até as pitorescas soluções forçadas: Teve azar e se foi; foi pro outro lado: corrente de alta tensão; lutou contra os cabilas; foi a Cabul; foi a Cabale, sociedade secreta difundida particularmente na Malásia; ocupava-se com contos à la Cable; disse “poh” e se finou. Este é apenas um pequeno recorte.   
   Bem, creio que já transparece meu objetivo: esse concurso revela uma quadro um tanto desconsolador das habilidades tradutórias que dormitam neste nosso país. Qual a razão? O fato de qualquer um poder participar, integrando-se muitos diletantes e calouros? Talvez. Só que, temo, não foi isso que diminui a aflição com o resultado. Pois poderemos primeiramente supor que um conto, e fácil, encaminhado a um concurso, terá sido trabalhado com maior primor do que um livro grosso traduzido sob a pressão do tempo; que, portanto, noutros casos a (inevitável) displicência resolve o que aqui causa o diletantismo; e, por segundo, há mesmo editoras que ajudam para a impressão ainda aos mais displicentes.  


1. Pedantismo
   Toda tradução é interpretação. Pretende reproduzir o que o tradutor entendeu de um texto, o que pode ser mais, pode ser menos, pode ser algo bem distinto daquilo que o autor quis expressar. Ademais, uma frase dificilmente pode ser tão simples que não haja possibilidade de traduzi-la de diversas maneiras. O tradutor compara-se a um instrumentista: como este, deve dar novo formato a um objeto concebido por outrem, de certa forma existente apenas virtualmente para ele. É tolo condenar a “tradução interpretativa”, como constantemente ocorre. A tradução não pode senão ser interpretação. A questão é apenas se o tradutor interpretou certo – ou ao menos se movimenta num quadro plausível.
   Algo bem distinto é, contudo, a tradução pedante. O translateur que sempre sabe tudo melhor do que o autor, em toda frase obstinadamente empenhado a se produzir, a quem não basta traduzir The Revenge com A revanche, firmando em vez disso A revanche de um homem ou Revanche petrificada – causa devastações quase maiores do que o simples ignorante (que, aliás, não deixa de ser).
   Em momento determinante, Greene compara o desejo da vingança em seu conto com um ser, um animal sob uma pedra: a creature under a stone. Animal, ser – algo insuficiente aos pedantes. Seus unidos esforços geram verdadeiro zoológico. Sua pedra cobre vermes, vérmina, rãs, besouros, cobras, víboras, cobras-cegas, sáurios, lagartos, répteis, gusanos, seres animais, pragas, bicharedo, bestas, demônios e monstros; aparecem besouros pestanejantes, bichos-de-conta à procura da luz, insetos vingativos; sequer falta um porquinho-da-índia confinado em escura caixa metálica, alimentado com seixo.
    Os mais afoitos pedantes não têm pudor em enlaçar verdadeiras frases de produção própria. O leitor atento costuma percebê-las por sua tolice.


2. Censura
    Variante do pedantismo é o costume de censurar moralmente o autor traduzido. A história de Greene pouco motivo ofereceu para tanto; não houve trechos ou vocábulos ofensivos que pudessem convidar a cortes ou amenizações. Não obstante: quem transpassar uma frase como pouco me interessava o clímax da história para o sentido de valores morais eu então ainda tivera pouca compreensão já atua como censor moral. O tradutor deve saber negar suas próprias opiniões.  

3. Pressa
    Traduções, diz-se, são sempre mais compridas. Deve ser verdade – de outro lado, sempre se perde algo no caminho. Palavras, orações, frases, parágrafos desaparecem sem deixar vestígios: perdem-se num dos processos de cópia. Pressa transforma o Pacífico em Atlântico, uma história moralista numa muito imoral.


4. Ignorância do contexto
    A mais empenhada revista de dicionários não dispensa o tradutor da necessidade de acompanhar o raciocínio. Precisa perceber que na história de Green o menino tantas vezes leu o romance “Foe-Farrell” por ter cogitado revanche, e não o contrário. Aliás, Fritz Güttinger fala algo sobre a prática da tradução literária, “Zielsprache” [Língua-Alvo], em seu interessante livro.

5. Frase salada russa

    Nem sempre será possível manter exatamente as unidades fraseológicas da língua original. No alemão, a frase fica facilmente confusa em função de o verbo freqüentemente ficar no final da frase, e em função do difícil emprego das tão cômodas orações participiais. Num caso desses, é melhor uma cisão determinada do que uma irreparável confusão lingüística, que afinal não houve no original. Devem, porém, ser temidos tradutores que cortam quaisquer longos períodos, fazendo de todo ligado um staccato canino.


6. Ênfase podre
   Há tradutores que não conseguem traduzir to read a book como ler um livro. Eles mandam devorar um cartapácio. Cada muito vira um demasiado, ignoram vingança quando não gélida, impiedosa, sem compaixão. Generosamente espraiam pontos de exclamação texto afora. Por vezes, dois ou três seguidos. Afinal poderíamos ter ficado surdo com sua gritaria.


7. Teutonização
    Como é sabido, a língua alemã tem uma tendência para a formação de substantivos brutos, pesados, (palavras-centauro, conforme Martin Walser), tendo alguns deles um ar de populismo nazista. Deveríamos poupar delas o autor estrangeiro. Quando Green diz loyalty, não se refere a devoção ou responsabilidade culposa, e o conflict of loyalty não é luta de credo. Qualquer baixio que consistiria nalgo como arisca admiração é rumorejo totalmente alheio a Green. Sem falar da estúpida falta de instinto em traduzir clímax como solução final.


8. Estereótipos lingüísticos
     Quem adquire seu vernáculo particularmente de historietas de amor, de preferência não deveria partir para a tradução. Quando o dito cujo escutar a palavra vingança, logo associará a com brasa que, por sua vez, arde. Onde dizia sinto uma necessidade de vingança, escreve ardia-me a brasa da vingança (com o resultado de que, na seqüência, o animal debaixo da pedra se transformará em cinza quente, em que ficam remexendo).

9. Falta de fantasia lingüística
    O tradutor deve saber apreciar dicionários, e ao mesmo tempo saber se lhes impor. Quem neles se amparar em demasia, redigirá algum esperanto, mas nenhum vernáculo. E o que mesmo fará quando o dicionário lhe falhar, afinal algo costumeiro?
  Ao final da história aparece, então, a palavra anti-clímax; como anti-clímax, decepcionantemente diferente do esperado ápice, revela-se o último encontro dos velhos colegas de escola, e a palavra alude ao mesmo tempo ao desejo da vingança dramática, (clímax) da literatura juvenil. O tradutor não teria, pois, que fornecer apenas uma correspondência alemã para o anticlímax, teria ainda que esclarecer essas relações. A palavra anti-clímax não corresponde a nenhuma dessas finalidades, sendo, ademais, uma falsidade – tal qual o anticlímax. Neste caso só serve um rodeio, o que exige a habilidade do uso um tanto flexível da língua. Facilmente acontece o tradutor tomar liberdades desnecessárias: senti-me como um balão que perdeu seu gás. Ou é demasiado tímido, gerando palavras malogradas tal qual anti-agravamento ou não-ápice. Fantasia lingüística: isso significa saber testar possibilidades, saber balancear nuanças, arriscar desvios, se bem que comedidamente e nenhum passo além.


10. Discurso direto
      Não é fácil acertar o tom exato de um diálogo De um lado, corremos o risco da artificialidade (ei, você não nos ajudara sempre na preparação ao latim?); do outro lado, de uma caricatura da gíria (rapaz, na escola sempre dava um durão no latim!). Mesmo bons tradutores chegam a fracassar do discurso direto. Desafio bem mais difícil para o tradutor ocorre apenas ao lidar com a tradução de dialetos, slang, argots e quejandos!


11. Imagens distorcidas
       Comicidade involuntária produz com maior facilidade aquele tradutor a quem falta o faro das imagens e comparações desmesuradas, que não percebe que o lado figurativo de uma comparação é aquele que deve determinar a formulação do que segue. Maliciosos apelidos, dizia na história, foram-lhe enfiados que nem espinhos sob as unhas. Aqui não funciona nem apelidos acertavam-no que nem espinhos (que afinal não são projéteis) nem foram entremeados, implantados, envolvidos, enredados ou jogados. Resulta sempre em mera catacrese.



12. Barreiras de importação
      Em textos estrangeiros sempre aparecem coisas que não existem na Alemanha. O que fazer? Primeiramente, devem ser reconhecidos. The head of the house é o mais velho da casa, o prefeito de um internato inglês (representante da turma já seria demasiado alemão). Quem não percebe isso, enfia-se em abstrusos descaminhos. Pare ele, esse irmão mais velho vem a ser o chefe de família, dono da casa, espírito líder do lar, proprietário da casa, caseiro. E a seguinte variante permite conclusões sobre relações familiares incomuns: meu pai era chefe supremo; meu irmão mais velho, chefe de minha família. Até quem reconhece com certa precisão o certo  nem sempre o saberá expor. O cacique é aqui tão inconveniente quanto o policial, o diretor da divisão escolar, o chefe da casa escolar ou mesmo o chefe de grupo e o líder de grupo.



13. Imposição de vícios lingüísticos
      Ao estranho autor gentilmente não se deveria impor os próprios vícios lingüísticos. Se para a gente tudo tiver um tchã ou graça, e se não simplesmente ocorrer, mas ocorrer um tanto peculiarmente, o autor traduzido, não obstante, merece misericórdia.