28 de junho de 2010

Veneração e abominação à palavra de Deus

     Não quero viver num mundo sem catedrais. Careço de sua beleza e sublimidade. Necessito-as contra o ordinário do mundo. Quero mirar a luminância das elevadas vitrais eclesiásticas; permitir-me o ofuscamento de suas cores amundanas. Necessito seu brilho. Dele preciso contra a imune e uniforme cor dos uniformes. Quero ver-me envolto da acre frescura das igrejas. Careço seu silêncio imperioso. Necessito-o contra o demente bramir no pátio nos quartéis e a engenhosa lábia dos sequazes. Quero ouvir o som sussurrante do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a retumbante hilaridade da marcha. Amo pessoas a orar. Careço de sua imagem. Necessito-a contra o pérfido veneno do superficial e demente. Quero ler os poderosos verbos da bíblia. Preciso da irreal força de sua poesia. Dela preciso contra a degradação da língua e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo em que não gostaria de viver.
     Há, contudo, outro mundo em que também não quero viver: o mundo em que se sataniza o pensamento independente e se estigmatizam de pecado coisas das melhores que podemos viver. O mundo que nos exige amor para com tiranos, torturadores e assassinos traiçoeiros, ecoando suas brutais botas atordoantes pelas ruelas ou, qual sombra covarde, andem às furtadelas pelas ruas num silêncio felino, golpeando pelas costas no coração de suas vítimas o metal cintilante.
     Perdoar tais criaturas e até amá-las é das mais absurdas exigências com os homens formuladas do alto dos púlpitos. Ainda que alguém efetivamente se habilitasse: significaria uma inédita inverdade e autonegação sem dó, que seria paga com a plena deformação. Esse mandamento, esse mandamento treslouco, perverso, do amor aos inimigos, leva as pessoas a sua desestruturação, a subtrair-lhes toda coragem e toda autoconfiança e a deixá-las maleáveis nas mãos dos tiranos para que não encontrem a força de se levantar, armados se necessário.
     Venero a palavra de Deus, pois amo sua força poética. Detesto a palavra de Deus, pois odeio sua crueldade. O amor, ele é um amor complicado, pois deve constantemente distiguir entre o poder de brilho das palavras e a verborrágica subjugação por um presunçoso Deus. O ódio, ele é um ódio difícil, pois como podemos nos permitir odiar palavras integrantes da melodia da vida nesta parte do globo? Palavras com que desde cedo aprendemos o que é veneração. Palavras que nos foram qual faróis quando começamos a sentir que a vida visível toda vida não pode ser? Palavras sem as quais não seríamos o que somos?
     Não esqueçamos, porém: são palavras que a Abraão exigem matar como um animal a seu próprio filho. O que fazemos com nossa ira ao ler isso? Que pensar de um Deus desses? Um Deus que acusa Jó de ralhar com ele, sendo incapaz e negligente? Afinal, quem foi que assim o criou? E por que é menos injusto Deus jogar alguém, sem razão, na calamidade do que um mortal comum o fazer? Não tem Jó toda a razão à queixa?
     A poesia da palavra divina, ela é tão avassaladora que tudo silencia convertendo toda objeção em lamentoso ganido. É por isso que não dá para simplesmente deixar de lado a bíblia, é preciso jogá-la quando nos cansamos de seus atrevimentos e da servidão que nos inflige. Fala-nos dela um Deus distante, sem graça, que pretende reduzir a um único inextensível ponto de obediência a imensa vastidão da vida humana - o grande círculo que consegue descrever ao lhe permitirem a liberdade. Curvo de pesadume, pecador carregado, árido da sujeição e da indignidade da confissão, a marca das cinzas atestadas, devemos ir ao encontro da cova na esperança, milhares de vezes desmentida, de uma vida melhor ao Seu lado. Como, porém, poderia ser melhor ao lado de Alguém que antes nos privara das felicidades e liberdades?
     Apesar disso, são de ludibriante beleza as palavras que Dele provêm e a Ele vão. Quanto as amei enquanto acólito! Como embebedaram-me à luz das velas do altar! Como parecia claro serem essas palavras a medida de todas as coisas! Quão incompreensível pareceu-me que ainda outras palavras eram importantes às pessoas quando cada uma delas podia significar apenas abominável distração e perda do maior! Ainda hoje detenho-me ao escutar um canto gregoriano, e num momento descuidado entristeço pela minha antiga embriaguez, irremediavelmente transformada em rebelião. Rebelião que se me ejetou ao escutar pela primeira vez as duas palavras: sacrificium intellectus.
     Como devemos ser felizes sem curiosidade, sem perguntas, dúvidas ou argumentos? Sem alegria no raciocínio? As duas palavras, qual golpe de espada que nos decapita, nada menos significam do que a exigência de viver nosso sentimento e nosso agir contra nosso pensar; são a conclamação a abrangente divisão; a ordem de sacrificar exatamente o cerne de qualquer felicidade: a unidade íntima e coerência de nossa vida. O escravo na galera, ele está acorrentado, mas pode pensar o que quiser. Mas o que Ele, nosso Deus, nos exige é que pelas nossas próprias mãos aprofundemos a escravidão às nossas mais profundas profundezas, e ainda que o façamos voluntariamente e na felicidade. Deboche maior pode haver?
     O Senhor, em sua onipresença, é alguém que dia e noite nos observa, toda hora, todo minuto, todo segundo registra nosso agir e pensar, quando poderíamos ficar todo a sós. O que é uma pessoa sem segredos? Sem pensamentos e desejos que somente ela, ela bem sozinha, conheça? Os torturadores, os da inquisição e os atuais, sabem: corte-lhe o recuo à intimidade, nunca desligue a luz, nunca o deixe só, impeça-lhe sono e silêncio. Falará. Que a tormenta nos furta a alma significa: destrói a solidão conosco mesma, que nós precisamos qual o ar para respirar. O Senhor, nosso Deus, nunca cogitou que nos furtaria a alma com sua repugnante curiosidade e seu voyeurismo, alma, aliás, que seria eterna?
     Quem, na verdade, gostaria de ser imortal? Quem gostaria mesmo de viver por toda a eternidade? Como deveria ser tedioso e insosso saber: não interessa o que acontece hoje, neste mês, neste ano: ainda virão dias, meses, anos inúmeros. Infinitos, literalmente. Algo ainda importaria se assim fosse? Já não precisaríamos contar com o tempo, nada teríamos a perder, não teríamos motivo para a pressa. Seria igual se algo fizéssemos hoje ou amanhã, absolutamente sem importância. Milionárias negligências seriam um nada perante a eternidade, e não faria sentido lamentar algo, pois sempre restaria tempo para recuperá-lo. Sequer viver à toa poderíamos, pois essa felicidade nutre-se da noção do tempo que escorre; o boêmio é um aventureiro à face da morte, um cruzado contra o ditado da pressa. Se sempre e em todo lugar houver tempo para tudo: onde restaria um espaço para a felicidade no desperdício de tempo?
     Uma sensação já não é a mesma quando surge uma segunda vez. Descora pela percepção de seu retorno. Cansamos de nossos sentimentos, fartamo-nos quando aparecem em demasia e demais persistem. Na alma imortal teria que brotar um gigantesco ócio e um berrante desespero diante da segurança de que nunca terminará, nunca. Sentimentos querem se desenvolver, e nós com eles. São o que são porque repelem o que uma vez foram e porque fluem em direção a um futuro em que voltarão a se distanciar de si mesmos. Se esse fluxo seguisse à eternidade: em nosso íntimo teriam que surgir milhares de sensações que, acostumados com o tempo palpável, nem podemos imaginar. De modo que nem sabemos o que nos está sendo prometido quando ouvimos da vida eterna. Como seria sermos nós eternamente, isentos do consolo de um dia sermos remidos da instância de sermos nós? Não o sabemos, e é uma bênção nunca o sabermos. Pois uma coisa efetivamente sabemos: seria o inferno, esse paraíso da imortalidade.
     É a morte que atribui a beleza ao momento e seu terror. Somente pela morte o tempo é um tempo vivo. Por que o Senhor não o sabe, o Deus onisciente? Por que nos ameaça com o infinito, que teria de significar um insuportável ermo?
     Não gostaria de viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho de suas janelas, de seu fresco silêncio, seu silenciar imperador. Preciso das marés de seu órgão e da sacra devoção de homens a orar. Preciso da santidade das palavras, da grandeza da grande poesia. Preciso de tudo isso. Nem menos, porém, preciso da liberdade e da inimizade contra todo o cruel. Pois nada é um sem o outro. E ninguém me obrigue à escolha.

Veneração e abominação à palavra de Deus é o título do trecho, dado pelo próprio personagem.
Fonte: Nachtzug nach Lissabon, de Pascal Mercier, 2006. Tradução não autorizada.

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