22 de janeiro de 2009

O acentuado olhar externo


     ‑Paiê, “peleleva acento?
     ‑Leva não, filha! – Estás indo para a terceira série, não é?
     ‑ Tô, pai, tu sabe!
     ‑Então vou te ensinar uma regrinha pequenininha, e tu vais ser a mais sabidinha da turma na acentuação. Consegues decorar 5 coisinhas de nada e umas 3 dicas?
     - Paiê, sei coisas muito mais difíceis. sei contar quase até mil!
     - Então, veja: imagina um português sem acentos. todas as palavras são tônicas em sua última sílaba. Todas, menos as 5 coisinhas que te comentei: as palavras que terminam em a, e, o, am e em. Estas têm sua tônica natural na penúltima sílaba. Por exemplo: baba, pele, avo, amam, porem. A regra vale até para o plural de todas essas palavras.
     - Então, filha: quando a gente quer que uma dessas palavras tenha sua tônica em outra sílaba que não a natural, é jogar o acento para . Podes fazer isso com os exemplos que te dei, e terás palavras novas. E, afinal, sabes a diferença entre um acento agudo e uma casinha, não é? Depois vamos ainda falar de ditongos e hiatos para arredondar a questão...
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     Vi essa regrinha num livro alemão de ensino da língua portuguesa. Revelou-se regra áurea, de fácil manuseio mesmo numa madrugada de pizzas e chopes. Aplica-se até às palavras monossilábicas: , , ti, , tu. Mais: tão válida é que os descabidos acentos do tipoidéia” e “vôo” caem com a reforma ortográfica pretendida, enquanto que “a regrinha” fica inabalada, pétrea. Por natureza, ela não abrange os artificiais e arbitrários acentos diferenciais. Aliás: no fundo a reforma ortográfica reconhece um pouquinho a “regrinha”.
     Nem na internet nem noutros lugares encontramos essa abordagem da acentuação gráfica do português. Algumas abordagens se aproximam. Na hora H, no entanto, sucumbem ao tradicionalismo das “regrasoficiais. Sucumbem às “oxítonas”, “paroxítonas” e ”proparoxítonas” -- grego para infantes e adultos não menos que otorrinolaringologista e endocrinologista, no guia telefônico sempre traduzidas para o português. E, como se não bastasse, agregam aindacasos especiais“, que a “regrinha” derruba numa cutucada de nada!
     Reza a introdução do Michaelis às “regras da acentuação gráfica”: “O português, assim como outras línguas neolatinas, apresenta acento gráfico.” Ora! E daí?! Nenhum desses descritores de regras tem a curiosidade pelo porquê do acento nem a satisfaz. dizem que têm. Não elucidam a óbvia, a perceptível tônica natural subjacente à flor do vernáculo. Logo mais afirma o Michaelis: “Além disso, você notou que a sílaba tônica nem sempre recebe acento gráfico. Portanto, todas as palavras com duas ou mais sílabas terão acento tônico, mas nem sempre terão acento gráfico.” O ignorante, ávido por sua alfabetização, espera a elucidação do fenômeno. Segue, qual nada, a descrição de um enorme caos sem explanação! E multiplica-se o caos em milhões de cabeças lusopensantes.
    Aliás, e bem entendido: o que nos apresentam comoregras de acentuação gráficanão as são. São a descrição de regras de acentuação gráfica. Descrição que plantou bananeira. Se estudarmos “as regraslivres do efeito moral da tradição, se racionalizarmos palavras e raciocínio, chegaremos à conclusão que mais lógico é descrever a regra como uma , com uma exceção fácil de memorizar:
      As palavras portuguesas terminadas em a, e, o, am e em têm sua tônica natural na penúltima sílaba. As demais, na última. Compreendidos os plurais de ambos os grupos. Sempre que a tônica se deslocar da tônica natural, incide acento gráfico. Exceção é o grupo de palavras terminadas em en, cujo plural segue a regra das terminações em ens (exemplo: garagens).*
     Pronto! Formulamos uma regra fácil de lembrar! (Aliás: as palavras alemãs de origem germânica, por exemplo, têm sua tônica na primeira sílaba, com exceção de algumas palavras com prefixos.)
     “Tônica natural”. Não sei se os gramáticos a detectaram e como a denominam ou denominariam. Mas ela existe. Por que chama o lusófono o Zéppelin (alemão) de Zeppelín, a Lúfthansa (alemão) de Luthánsa? Porque a tônica ali lhe é natural enquanto nenhum acento gráfico forçar pronúncia diferente.
     Mostram-nos os exemplos anteriores: o luso-falante, ainda que analfabeto, tem uma maneira de distribuir as tônicas nas palavras. É o que chamei de “natural”. Isto não é uma regra, é uma descrição; é um por via de regra. Pois, nas tantas palavras acentuadas, o luso-falante foge ao princípio ou regra por razões várias, uma delas a etimologia, certamente.
     Não questiono os gramáticos. Não dizem nada de errado. Questiono a didática: se de diversas maneiras pudermos descrever o fenômeno das tônicas no português, a maneira mais simples é a mais didática. É bem possível que os gramáticos não possam deixar sua nomenclatura nem seu modo de apresentação. Mas que deixem isso para seu entendimento interno.
     Quanto não subiriam as notas médias dos alunos e a qualidade da ortografia do povo brasileiro se aplicássemos a simples lógica da “regrinha”! Por que haveriam os alemães de usufruir dessa simples explanação à introdução ao idioma português e os luso-falantes não? Algum de nós daria a seus filhos uma explicação complexa e cabeludíssima se conhecesse uma simples ou simplória?
     Quanto não complicam o ofício, a nós tradutores, esses mal-aventurados acentos gráficos da escrita dos modernos tempos!
     A “regrinha” que qualquer criança de 8 anos para mais consegue entender merece o comando.
    
* São poucas palavras de origem grega, hebraica, alemã, inglesa, etc.: hífen, abdômen, âmen, cáften, dólmen, éden, gérmen, hímen, líquen, lúmpen, sêmen, etc. Estes plurais confundem-se hoje com os plurais das palavras de origem latina.

Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS.

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